domingo, 14 de outubro de 2018

O HOMEM NOVO: UM IDIOTA.

A idiotia interior de todos nós


Teixeira Coelho
especial para a Folha


A televisão é a imagem da besta." Em grandes letras brancas sobre fundo negro é isso que se lê em outdoors espalhados ao longo da marginal Tietê, em São Paulo. Outros painéis do mesmo tipo reforçam a mensagem que alguma seita religiosa quer imprimir nos olhos e mentes dos que passam por essa via fétida e deprimente. Numa noite de outono, sob densa poluição, o cenário que ajudam a criar é de apocalipse, quase. Tentando sair da cidade ou a ela retornando como um condenado, é grande a tentação de concordar com essa seita.

Mas como é uma seita a dizê-lo, torna-se inevitável pensar duas vezes e procurar na TV por aquilo que desmentirá de algum modo essa pregação visual, no limite equivocada e enganosa.

E é essa mesma a primeira reação diante do livro de Sartori, "Homo Videns": desconfiar do que diz. Isso porque logo de início o autor diz ser sua intenção "assustar bastante os pais mostrando-lhes o que poderá acontecer à sua criança televisiva", quer dizer, como se verá, depois, transformar-se num imbecil. É preciso sempre desconfiar de um livro que se propõe metas desse tipo, armadas sobre uma pedagogia da negação e, de resto, nas circunstâncias atuais, inúteis.


O autor de fato vai querer assustar os pais e nós todos com aquilo que tantos outros já nos disseram: que a hegemonia da imagem abole o pensamento lógico-criativo, que a televisão é agora o grande eleitor ao tudo manipular, que a democracia definha sob a TV e a internet e que esse abominável "Homo videns" é a antítese do fantástico Homo sapiens. Essas idéias não são novas nem são aqui tratadas de modo inovador. E diante delas o leitor, como ao deparar-se com as mudas pregações da marginal, acaba oscilando entre a concordância com a análise do autor e a anotação dos tantos pontos em que esse autor derrapa no "apocalipsismo" tradicional diante da TV.

Em suma, Sartori desconfia da imagem, que para ele muda a natureza mesma do Homo sapiens ao destruir sua capacidade de abstração. As palavras escritas levariam à abstração, e a imagem, à redução e à extinção do pensamento. O velho Homo sapiens trabalharia com concepções abstratas próprias do mundo da inteligência, e o "Homo videns" ficaria com as coisas concretas do mundo sensível. Sartori faz uma distinção absoluta entre a percepção do mundo pelos sentidos e a percepção pelo intelecto para privilegiar este sobre aquele, como na mais arcaica filosofia.

É redutor demais. Ele parece não se dar conta de nada do que aconteceu com a arte nos últimos 500 anos e com o cinema de arte nos últimos 70 ou 80, para ficar com esses dois casos.

E dá um peso excessivo à TV no jogo da política. A TV italiana talvez tenha elegido Berlusconi, assim como a brasileira ajudou a eleger Collor. Mas George W. Bush, para ganhar, teve de contar com a "ajuda" dos organizadores da eleição na Flórida e dos juízes da Suprema Corte norte-americana.

A TV nem sempre é decisiva ou relevante, como se vê. E, depois, não há por que investir apenas contra a TV: os jornais, que usam as sacrossantas palavras escritas, contribuem fortemente para a manipulação geral.

Aqui no Brasil deram enorme destaque às declarações de um senador que se cassou para não ser cassado por quebra do decoro (é o mínimo que se pode dizer) e que em seguida saiu dando lições de moral a todo mundo. Os jornais dizem que isso é informação. No mínimo, é o mesmo pós-pensamento a que Sartori alude. A manipulação política e a corrosão da democracia e do pensamento dependem de um nível bem mais abaixo e bem mais amplo.

Há, de todo modo, alguns pontos interessantes neste livro. Um deles é a relativa radicalidade de que ele se reveste, em suas últimas páginas, ao deixar claro que por pós-pensamento o que o autor entende é mesmo a imbecilidade, assim como a expressão "Homo videns" é, para ele, apenas um eufemismo para "homem idiota". De fato, talvez a condescendência com as massas telespectadoras e a tentativa de resgatá-las de sua posição de cúmplices gozosos da TV, jogando a responsabilidade por tudo isso no sistema, tenha impedido que se tornasse visível mais cedo a imagem de uma sociedade de idiotas que se espalha tanto entre os que estão do lado de cá do tubo quanto do lado de lá, gerando a programação dos canais. Costumava-se escrever que não se devia dizer "comunicação de massa" e, sim, "comunicação para a massa", porque não seria a massa que faria a comunicação para si mesma: essa comunicação seria feita por outros estamentos ou classes da sociedade, visando à massa apenas para explorá-la e manipulá-la. Hoje, porém, já está claro que as massas elas mesmas, por meio de seus "intelectuais orgânicos", tomaram o controle da produção na TV e fazem programas para si mesmas e à sua própria imagem. Nunca isso se tornou tão visível quanto após o aparecimento da TV a cabo no Brasil. A TV aberta virou predominantemente uma grande latrina enquanto a TV a cabo é apenas um pouco menos ruim.

Portanto, falar em idiotia talvez seja mesmo correto. Hans Magnus Enzensberger usou um outro eufemismo para designar o homem pós-TV: analfabeto secundário. É a pessoa que consegue ler um jornal, sacar dinheiro de um caixa eletrônico, mas é incapaz de interpretar por si o cenário político ou cultural que o cerca. Analfabeto secundário é, hoje, uma forma polida demais. Idiota parece ser o termo. Que o público se enterneça com o idiota Forrest Gump é o sinal mais claro não apenas da existência da idiotia, mas também de seu culto. Idiotia que se desdobra, por exemplo, na recepção triunfal dada em sua cidade àquele mesmo senador renunciante.

Mas, como sempre, é bom ir devagar com o andor. Talvez todos tenhamos direito a um índice cotidiano de idiotia. Talvez a idiotia da TV não produza necessariamente o idiota perfeito. Que a TV abre as portas para nosso idiota interior, aquele de cada um de nós, é evidente. Que sucumbamos todos, inclusive as massas, sempre e em todos os aspectos a esse "idiota residente" não é tão certo.

Fora isso, o livro repete idéias conhecidas. De certo, resta que não mais se trata apenas de constatar a idiotia promovida pela mídia eletrônica e alertar para o assalto à democracia e ao pensamento feito pelos "gangsta rap" e outros neonazistas mal disfarçados. Se há um tema a discutir é o de uma política cultural para a mídia eletrônica, TV e internet. Elas estão aí; como usá-las para evitar que nos usem: é essa a questão, ainda evitada na sociedade e nos governos.



Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" (Geração Editorial) e "Dicionário Crítico de Política Cultural" (ed. Iluminuras).

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