segunda-feira, 7 de outubro de 2013

QUANTO VALE OU É POR QUILO: QUANDO A MISÉRIA DÁ LUCRO

Novo filme de Sérgio Bianchi dispara contra corrupção das ONG´s, mas também contra



Há cinco anos, com o filme “Cronicamente inviável”, o diretor Sérgio Bianchi disparou sua metralhadora giratória contra as muitas mazelas da sociedade brasileira: da hipocrisia da classe média ao tráfico de órgãos humanos. Agora, com “Quanto vale ou é por quilo”, a história não é muito diferente. São poucas as instituições da sociedade brasileira que saem ilesas do filme, mas são as “Organizações Não-Governamentais”, as ONG’s, que são mortalmente feridas pelo filme de Bianchi.

Tendo como ponto de partida o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, e traçando paralelos entre histórias reais (retiradas do Arquivo Nacional), envolvendo os desmandos e abusos que marcavam as relações entre senhores e escravos, por volta de 1790, e o dia-a-dia de uma empresa patrocinadora de projetos como “Informática na Periferia”, “Sorriso de Criança” e “Projeto Alegria”, o filme de Bianchi descortina o quanto de corrupção e falcatruas existe nesse setor que, nas palavras de um personagem, vive de “faturar em cima da permanência da miséria”.

Um setor que, também segundo dados apresentados no filme, é composto por mais de 20 mil entidades que movimentam nada menos do que U$ 100 milhões por ano.

Dieta na consciência
É inegável que dentre as milhares de organizações (que, diga-se de passagem, surgiram e se proliferam devido à total ausência do Estado na área social) e os milhões de funcionários e voluntários que elas empregam, há gente e entidades honestas, mas também é impossível negar que muitos são aqueles que se utilizam de ONG’s para obter altos lucros, desviar verbas públicas, lavar dinheiro sujo ou acobertar negócios escusos. 

Tudo isso é escancarado no filme, com também algumas tantas outras facetas não menos asquerosas de toda essa história: desde a “disputa”, entre diferentes entidades, pelos miseráveis até a relação que gente endinheirada mantém com entidades filantrópicas. Particularmente no que se refere a esse ponto, o filme é de um sarcasmo brilhante ao mostrar como muita gente faz do assistencialismo uma forma de expiar suas culpas e promover uma “dieta na consciência”, como afirma uma “perua com consciência social”, que aparece no filme.

A liberdade de consumir
Apesar de estarem no centro da história, as ONG’s não são as únicas atingidas por “Quanto vale ou é por quilo”. Sobram disparos para praticamente todas as instituições da democracia burguesa. Uma sociedade que é brilhantemente definida pelo personagem de Lázaro Ramos, um bandido extremamente bem-articulado: “a liberdade de consumir é a única e verdadeira funcionabilidade da democracia”.

Todo resto é uma farsa ou pura maquinação que se volta contra o povo, seja com a escravidão nos séculos passados, seja pela manutenção de um exército de miseráveis, hoje presos às correntes da “modernidade”: a fome, o desemprego, a falta de acesso a quase tudo. Uma situação que transforma a população mais carente em meras peças num jogo que envolve entidades desonestas, órgãos governamentais e empresas, que descobriram que é sempre possível lucrar com a miséria.

No filme, a enorme rede de falcatruas surge em uma excelente cena no Teatro Municipal de São Paulo, onde se realiza uma “festa solidária” para homenagear os que se destacaram no setor. Entre um gole de champanhe e uma beliscada no canapé de caviar, “ongueiros” e seus parceiros discutem como se beneficiar das Parcerias Público-Privada, o inflacionamento do valor das propinas pagas aos órgãos públicos e a lucratividade do setor. 

Também nessa festa, o personagem de Caco Ciocler, um dos donos da entidade, aproveita para contratar o assassinato de uma líder comunitária que está ameaçando seus interesses. Enquanto isso, mais uma vez, o “povo” é engambelado. 

A total falta de perspectiva
Como geralmente acontece nos filmes de Sérgio Bianchi, o povo surge vitimado pela total falta de perspectivas, “escravos sem dono”, encurralados pelo Estado ausente, o assistencialismo corrupto e a violência por todos os lados.

Uma violência apresentada de forma excepcional. Traçando um paralelo entre os negros capitães do mato que capturavam escravos fugitivos (num episódio baseado no conto de Machado de Assis) e os matadores de aluguel que, hoje, fazem o serviço sujo para a burguesia e os órgãos de repressão, eliminando gente “rebelde” ou chacinando jovens na periferia, Bianchi ainda lança um disparo certeiro contra a polícia e suas práticas assassinas.

Permeado por cenas fortes e bem-construídas, e com uma excelente trilha sonora, “Quanto vale” é, certamente, uma agradável exceção em meio à mesmice das produções hollywoodianas e a infinidade de bobagens descartáveis que invadem as telas de cinema país afora. Apesar do característico ceticismo do diretor, o filme é uma denúncia contundente do capitalismo e suas mazelas.

Aliás, no filme, a quase total falta de perspectiva dos personagens pobres é, de certa forma, amenizada pela personagem Arminda, que denuncia o superfaturamento de um dos projetos. Dela surge, a princípio, alguma possibilidade de resistência e luta. Contudo, é o “bandido consciente” de Lázaro Ramos que Bianchi usa em uma impagável comparação para transmitir seu hilário cinismo, ao estabelecer semelhanças entre os seqüestros e os métodos de “captação de recursos” e “redistribuição de renda” praticados pelas ONG’s. Trata-se de um comentário que torna ainda mais impactante os “dois finais apresentados no filme. 



UM DEBATE SOBRE A POBREZA

A minha coluna que está hoje na revista Amanhã, encartada no jornal O Globo:

Anoitece no Camboja. Numa aldeia muito pobre, num barraco improvisado de madeira, o menino Pisey, de 12 anos, ajuda sua irmã de 5 a se banhar com uma pequena lata de banha. A mãe Neang, uma mulher de 36 anos, aidética e grávida, precisou deixar sozinhas as duas crianças para ir ao médico usando uma espécie de mototaxi. Antes de sair, pediu ao filho que cuidasse da menina e prometeu trazer um doce. A pequena chorou e foi consolada carinhosamente pelo irmão. Pisey não está na escola porque precisa catar lixo para a família sobreviver, já que o pai, que vivia arranjando amantes e batendo em sua mãe, abandonou a família. Pisey conta isso chorando, com um olhar adulto. Naquele dia, Neang voltaria mais tarde. Dias depois, internou-se de vez para ter outra filha, LyLy, que morreu com dois meses de causa ignorada. No Camboja, a expectativa de vida é de 65 anos e uma criança, quando nasce, tem mais chance de ser desnutrida do que de frequentar a escola. Neang e Pisey são dois personagens do documentário “Bem-vindo ao Mundo” que o Canal Futura vai apresentar na segunda-feira, dia 26, às 21h30m. E faz parte de um megaprojeto chamado “Por que pobreza? (Why poverty?), da ONG internacional Steps International. Este é o segundo filme da série, que começa no dia 25, domingo, com a animação “A História da Pobreza”.

“Bem-vindo ao Mundo” tem cenas bem fortes. É difícil ver crianças serem tiradas mortas das barrigas de mulheres semimortas ou assistir a dor de mulheres que chegam aos hospitais, dias depois de entrarem em trabalho de parto, já com o útero em frangalhos e com morte iminente. Mas, mais difícil ainda, é tentar responder à pergunta-chave: “Por que pobreza?”. A ideia dos documentários é justamente tentar fornecer subsídios para essa reflexão. Na série de entrevistas que vão permeando as imagens, surge uma dica indiscutível: dinheiro tem, o que falta é distribuí-lo.

Dados recentes dão conta de que 130 milhões de bebês nascem a cada ano mas, dependendo do lugar onde nascem, a criança já pode se considerar vitoriosa ou semimorta. “Eu terei muitos filhos porque sou pobre. Talvez um deles se torne alguém importante e me tire da pobreza”, diz uma personagem. Essa imobilidade social lembra o sistema feudal dos séculos X a XII, quando as pessoas nascidas numa família viravam posse de senhores e nunca mais conseguiam sair dessa situação. É uma realidade com a qual precisamos conviver hoje, na era globalizada. E está, assim, aceito o desafio proposto pelo programa de documentários que termina em dezembro: fazer refletir.

“Bem-vindo ao Mundo” mostra histórias sofridas de mães em três lugares: Serra Leoa, na África; Camboja, na Indochina e Estados Unidos. Sim, a maior potência do planeta está em apuros com relação à sua crescente taxa de mortalidade materna e ao número de crianças desabrigadas em seu território: 1,6 milhões, segundo dados mais recentes. A mãe americana do filme se chama Starr, tem outros três filhos e atualmente é uma sem teto porque perdeu a casa na crise de 2008. Já perto de dar à luz, ela e o marido procuram ajuda no centro que faz Pré-natal para mulheres desabrigadas. Com as sacolas de plástico cheias de roupinhas e fraldas, os dois andam pelas ruas de cabeça erguida: “Nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo, mas aconteceu”. Há 22 anos, diz a diretora do Centro, Marta Ryan, eram 72 mulheres atendidas por ano e hoje são mais de 500.

Em termos de mortalidade infantil, segundo o documentário, o melhor país para se nascer é Cingapura e o pior é Serra Leoa. A personagem africana, Hawa, mora numa aldeia chamada Bengie e tem 25 anos. A parteira da aldeia se queixa porque o governo decidiu terminar com os partos feitos em casa e parou de mandar suprimentos ao local. Mas sempre é possível driblar o comando e foi o que a parteira fez. O filho de Hawa nasceu em suas mãos, saudável, e assim começou sua luta pela sobrevivência. Michael, nome dado ao menino, tem sobre os ombros uma forte desvantagem: em seu continente, 82 a cada mil bebês morrem antes de completar 1 ano. Na Europa, essa relação é de 6 para cada mil.

Por sorte conseguimos ampliar no mundo o acesso a este tipo de documentário, que recomendo fortemente. É informação in natura.


Amélia Gonzalez (http://oglobo.globo.com/blogs/razaosocial/posts/2012/11/20/um-debate-sobre-pobreza-475658.asp)